terça-feira, maio 30, 2017

Amor de maré baixa.

             Já ouvi dizer que amor é labirinto de caminhos que se encontram, que é poesia de Vinícius desgarrada do papel. Já me disseram que amor é laço de nó cego, que é dor que quer sempre se sentir de novo. Ouvi dizer que amor é morte que faz renascer, que é o mais misterioso e profundo dos oceanos. Mas, versos e prosas à parte, olho para um lado e para o outro e acabo me convencendo de que o amor de hoje está mais para maré de vazante.
            Existe um filme – o meu preferido - que, se você ainda não viu, por favor, veja: Cinema Paradiso. Lembro como se fosse hoje a primeira vez que o assisti. Eu tinha uns nove ou dez anos de idade. O filme concorria ao Oscar e minha mãe fez questão de me levar a tiracolo para conferir se a obra era mesmo tudo aquilo que diziam. Entramos nós três na sala de exibição, eu, minha mãe e um grande saco de pipoca. Foi naquele dia, diante da telona, que eu comecei a ter uma leve compreensão sobre o sentimento mais misterioso que existe.
            O filme falava de um cara que, ainda muito jovem, tinha duas grandes paixões: o cinema e uma garota. O amor desmedido que ele sentia pelos dois era fielmente retratado no olhar do protagonista em cada cena, em cada gesto, em cada espera e reencontro. O amor fazia-se notar. Um dia, a família da garota mudou-se de cidade, foi embora e ela nunca mais voltou. A partir dali, era como se o rapaz morresse em vida, como se o mundo passasse diante dos seus olhos em preto e branco. O tempo correu e ele tornou-se um rico e famoso diretor, reconhecido pelo mundo por conta do único amor que lhe restou: o cinema. Porém, já velho, trazia consigo a infelicidade que só aqueles que carregam um coração vazio de fato conhecem. Sua vida, incompleta, faltando o único pedaço que o tornava inteiro, era nada menos do que um roteiro sem final feliz.
            Está gravado de forma cristalina em minha mente este dia. Eu, de frente para a luz que saltava da tela, com o saco de pipoca quase intacto por conta de um nó que travava a minha garganta, envergonhado de dar vazão ao que sentia, segurava o choro com a clara sensação de que iria implodir. Então, o bem e o mal que aquele cara viveu, tudo aquilo diante de mim, seria o amor? Era muita intensidade, era encontro de céu e inferno na Terra. Pensei que jamais queria sentir aquilo, preferia passar a vida brincando de Playmobil. Porém, entendi o recado, percebi ali que amor é força incompreensível que constrói e que destrói com a mesma competência, mas que também nos faz humanos.
            Hoje, muito tempo depois, olho à minha volta e me pergunto: onde foi parar todo esse sentimento que encontrei naquele filme? Onde foi parar o morrer e viver por uma história? Cadê gente desfazendo-se em cacos para depois renascer? O Tinder não permite isso, o Happn também não. Pessoas vêm, pessoas vão, ocupam fragmentos de instantes, levam e deixam retalhos de memórias. Abraços curtos, beijos também, viramos zumbis do amor. Não nos entregamos, não nos estendemos, moramos cada vez mais em nós mesmos. Escolhemos ficar onde dá pé, desistimos de mergulhar. E cada um de nós, carentes de amar, seguimos na superfície, sem arriscar descobrir como é bom, vez ou outra, se afogar.

sexta-feira, abril 24, 2015

O carro de Donono: quase um objeto de leilão.

O ano era 2006. Estávamos eu, Donono e Quico, um amigo nosso, o maior maconheiro que já pisou na Terra. Fumava todos os dias. Para se ter uma ideia, o cara plantava maconha na sacada do apartamento.

Estávamos os três assistindo a um jogo de futebol extremamente enfadonho na casa de Quico. Sem gols, sem lances bonitos, sem cheerleaders que prestassem, Quico sugeriu:

- Vamos acender um baseado?

Prontamente, com o dedo balançando diante de si, Donono recusou. Ele sabia que a erva que Quico plantava, regava, cuidava e colhia, era forte. Quico a apelidara carinhosamente de “dedo do Hulk”. Já eu não tinha o menor costume de fumar, mas aquele jogo estava tão chato, numa tarde de domingo mais chata ainda, que aceitei.

Quico enrolou o seu baseado com uma rapidez e uma destreza impressionantes (de uma coisa eu tive certeza: maconha não afeta a coordenação motora). Acendeu seu fumo e trouxe cerca de 55% do ar do planeta para os seus pulmões. O trago durou o tempo suficiente para uma pessoa comum morrer asfixiado pelo menos duas vezes. Lentamente, com o olhar na parede, Quico me passou a brasa. Repeti o seu ritual, muito mais discreto, obviamente, e mirei a parede também.

De repente, a parede parecia interessante. Era um branco alvo, com pouca textura, demonstrando talento do pintor. Tinha pequenos pingos que lembravam gotas de café. “Sim, talvez tenha sido café que caiu aí”, pensei. Quando teria sido derrubado? Por quem? Por quê? Seria expresso ou coado? - muitas questões, de forma muito lenta, vinham à minha cabeça - É, café mancha...

Então, ao longe, ouvi a voz de Donono. No início, não consegui entender o que ele dizia. O meu grau de atenção não era dos melhores. Então, peguei apenas o rabicho de sua fala:

- ... é um Fiesta 94 e eu tô querendo trocar.

Sem muita agilidade, tirei os olhos da parede e mirei Donono. Eu não queria conversar muito, curtir uma reflexão naquele momento me parecia uma ideia melhor. Mas, resolvi interagir:

- Donono, seu carro é muito velho. Troque mesmo – falei arrastando palavras.

Quico continuava o seu diálogo telepático com a parede. Donono respondeu:

- Não é tão velho assim, é 2004.

A questão é que, sabe-se lá porque, Donono dizia 2004 e eu só entendia uma década atrás: 94.

- Como não é velho, Donono? Tem mais de 10 anos o seu carro...

- Tá louco? Meu carro tem 2 anos.

Quico olhou pra gente, piscou o olho lentamente e voltou-se pra parede novamente.

- Você é que tá louco e não sabe fazer conta, cara... – eu disse.

- Você é burro? A gente está em 2006 – respondeu Donono, um pouco menos paciente.

- O seu carro é tão velho que é da época do tetra...

- Que tetra? Eu falei 2004... dois mil e quatro!

- Então, Nono... Senna estava vivo quando você comprou seu carro.

- Mamonas também... – completou balbuciando Quico.

- Vocês estão me sacaneando, porra? Meu carro tem 2 anos só.

- Quando você comprou seu carro, não era nem real... pagou em cruzados novos –  disse eu enquanto pensava no risco que Donono corria de pegar tétano no carro.

- Dois mil e quatro, caralho! – gritava Donono.

- Velho de-mais... – repetia Quico.

- Hoje é domingo, cara, mas amanhã é segunda. Vai na concessionária e troca esse carro. Faz isso logo de manhã... – falei com verdadeira preocupação de amigo.

- Troca, bicho... troca logo – disse Quico também demonstrando zelo.

- EU NÃO VOU TROCAR MAIS PORRA NENHUMA! VÃO SE FODER VOCÊS DOIS.

Agora era só eu, Quico e a parede. Ouvi bem ao longe a porta da casa batendo. Concluí:

- Ele se retou.

- ....

- ....

- ....

- Ele se retou – confirmou Quico, quinze minutos depois.

quinta-feira, maio 22, 2014

O misterioso e lamentável desaparecimento de todas as piriguetes do planeta. (Parte II)



            O esforço conjunto mundial seguia em frente. Os países cooperavam, inimigos históricos uniam-se, mágoas antigas eram superadas, passados amargos eram esquecidos.
Não, não era a fome na África, não era o aquecimento global, não era o desmatamento da Amazônia, não era um meteoro ameaçando a espécie humana, não foi uma nova usina nuclear superaquecendo. O motivo de tamanha união e nobreza de espírito era o súbito sumiço de todas as piriguetes do planeta. Durante a saga do homem na Terra, essa foi a única catástrofe capaz de aproximar povos, nações e religiões. Pela primeira vez, era como se o planeta girasse junto, numa só sintonia.
            O tempo foi passando e importantes recursos dos países foram sendo consumidos com a busca desenfreada. Ainda que muitos chefes de estado e parlamentos começassem a fazer oposição às investigações, a maioria esmagadora da população ia às ruas cobrando o fim do mistério e a volta do sorriso sincero nos rostos masculinos. E então seguiu-se assim por muito tempo: dia após dia, quando o sol despontava em cada horizonte, país a país, em todos os continentes, já estavam de pé em busca de respostas. Grandes e inéditas ações foram realizadas com o objetivo de tentar atrair - sem trocadilho - as mulheres perdidas.
            A China, em apenas uma semana, produziu 15 milhões de calças zebradas que seguiram em containers para os 4 cantos do mundo e, a módico preço médio de U$ 4.99, ganharam lugar de destaque em vitrines de todo o planeta.
            Numa fantástica ação casada, a Suécia subsidiou toda a sua produção de Absolut e a Áustria doou histórica quantidade de latinhas de Red Bull que se uniam em combos e eram deixadas em baldes de gelo pelas ruas.
            Toda a frota de navios militares russos foi transformada em navios de cruzeiro universitário com open bar e começavam a atracar nos mais importantes portos do planeta.
Apesar de celebradas por todos os continentes, essas e outras ideias geniais não surtiam qualquer efeito. Infelizmente, as calças mantinham-se empilhadas em intermináveis estoques, ninguém triscava nos combos de vodca além de bêbados em fim de noite e os navios pareciam fragatas e destroieres fantasmas, apesar das enormes placas de “7 dias de micareta no mar” em seus cascos.
Mas, toda essa mobilização era como uma grande maratona. E, como em qualquer maratona, o fôlego dos participantes vai diminuindo ao longo do percurso. Para uns, o fôlego acaba antes, para outros, depois. A questão é que, não por falta de vontade e empenho, mas por falta de opção, países economicamente mais frágeis começaram a interromper suas missões.
Abrindo a lista de desistências, Suriname, Congo, Grécia e Equador. Cuba também deu uma forte balançada, mas Estados Unidos e Rússia, juntos, fiavam a ilha sem pedir nada em troca. Obstinada em descortinar a verdade, a União Europeia tirava recursos de onde, há muito, não possuía. Mas, após algum tempo, temendo o pior, o Velho Mundo também abandonou a busca. De tanto gastar na grande empreitada, de país emergente, o Brasil passou a país submergente e chegou a penhorar o Acre junto ao Japão em troca de crédito e tecnologia para continuar a procura.
O mundo investia alto. Mas, infelizmente, não havia retorno.
Sem qualquer resultado efetivo e dilapidando importantes reservas, um a um, os países foram interrompendo seus esforços. Por último, depois de um persistente trabalho que inspirou o mundo, os Estados Unidos jogaram a toalha e encerraram definitivamente a maior e mais custosa busca que o mundo já presenciou. Porta-aviões, tropas de inteligência, drones de espionagem, zepelins, todo o tipo de aparato militar havia sido utilizado em vão.
No dia seguinte, o planeta acordou com uma grande ressaca. Muito se tinha feito, demais se havia gastado, absolutamente nada foi encontrado. Estampado na capa da Time, em vermelho, o título “WHERE?” por cima de uma foto de Paris Hilton num gigantesco salto verde limão.
Diante de um mundo desolado, desestimulado e deprimido, um sinal de rádio captado por um submarino nuclear russo fez o mundo segurar a respiração por alguns instantes. Uma comissão mundial de militares especialistas em criptografia reuniram-se de emergência na sede da ONU para se certificarem de que aqueles “bips” no radar tratavam-se da resposta que todas as nações esperavam. Microfones hipersônicos captaram um repetitivo padrão de som. Era música eletrônica.
Sim. Tratava-se da grande notícia. A boa nova. O fim das superdosagens de antidepressivos.
Feriado mundial. O planeta celebrava. A Times Square foi tomada de pessoas se abraçando. Tóquio anunciou 3 dias de comemorações não trabalhados. A Rainha Elizabeth abriu os portões do jardim do palácio para uma maratona de shows antes só vista no seu jubileu de ouro. Na Faixa de Gaza, as únicas explosões que se ouviam eram as dos rojões. ACM Neto anunciou o terceiro carnaval do ano. O ex-presidente Lula tomou dois litros de 51.
Em meio à grande confraternização global, as lideranças mundiais ainda aguardavam a explicação sobre o desaparecimento das piriguetes do mundo. O motivo tinha nome: Sunrise Morpheus Unlimited Finally I’m High. Uma rave que há mais de um mês estava acontecendo em Sebastopol, litoral da Crimeia. Estavam todas lá. Milhões de microshorts com os bolsinhos de fora, bonés de aba reta, camisetinhas escrito “Ibiza” e selfies de duck faces sendo disparados por todos os cantos.
Bom, aí o resto da história você já conhece. Municiado dessa preciosa informação vinda de suas fronteiras, Wladimir Putin disse que a Crimeia era dele, Obama disse que não era e cada país do mundo tomou um lado da briga que começou ano passado e parece que não termina até essa rave acabar.

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Da série: só se vê na Bahia.



Cheio de sal e areia, louco pra chegar em casa, me aproximo do carro estacionado na praia. Ao longe, surge o flanelinha correndo feito um velocista de 100 metros rasos, utilizando o pouco fôlego que lhe restava para soprar um apito e chamar minha atenção – cena clássica de guardadores que não querem perder o seu trocado. Tranquilamente, fui colocando as coisas no carro. Ao perceber que não haveria fuga de minha parte, a desesperada corrida virou um trote e ele chegou até mim. Com a voz ofegante, o flanelinha disse:

- Me abraça.

Esperando qualquer frase dele que não esta, perguntei surpreso:

- Como assim, meu velho?

- Me abraça, barão – ele insistiu na resposta.

- Abraça? Não entendi – perguntei enquanto tentava imaginar que grau de carência era aquela do sujeito.

- Zorra, fiquei a manhã toda aqui olhando seu carro, patrão. Quero meu abraço – disse ele impaciente enquanto gesticulava e balançava a flanela pra cima e pra baixo.

Mesmo sem acreditar no surrealismo daquele pedido, mas, ao mesmo tempo, imaginando que podíamos estar entrando numa nova ordem mundial, timidamente abri os braços e fui andando na direção do flanelinha.

- Oxe! Colé meu broder? Cê é viado, é? – numa rápida esquiva, como um ágil capoeirista, o cara se afastou de mim.

 - Ó meu irmão, já fui – surpreso novamente, baixei os braços e entrei no carro.

- Porra, cada maluco da porra nessa cidade! Ô barão, na moral, largue aí meu abraço, meu 5 real e parta.

Enigma decifrado, peguei no cinzeiro do carro duas moedas de 1 real e, ansioso para ir embora, entreguei a ele enquanto manobrava.  Olhando para as moedas em sua mão, o guardião da rua ainda me obrigou a ouvir:

- Porra, barão... abraço fraco da porra o seu, viu?